
Gênero: Country / Pop / Folk / Hip-hop
Gravadora: Parkwood Entertainment
Lançamento: 29 de março de 2024
Uma escuta obrigatória: O segundo ato pós “RENAISSANCE” é mais um capítulo histórico onde Beyoncé planta a bandeira de diamante do seu legado.
Na última sexta-feira (29), Beyoncé lançou seu segundo ato pós “RENAISSANCE” (2022) intitulado “COWBOY CARTER”. O ato do meio de uma trilogia que ainda há de se concretizar vem quase após dois anos do seu primeiro ato.
Em “RENAISSANCE”, a aposta de Beyoncé era na cultura ballroom, homenageando ícones do disco, do house music e da comunidade queer. O suprassumo sucessor de “Lemonade” (2016) é uma evolução artística extraordinária que marcou para sempre a indústria da música contemporânea, com uma grande parcela de culpa da turnê de apoio ao disco que se tornou um evento raro e único para admiradores e entusiastas da arte de Beyoncé, que é uma das maiores artistas de nossa história.
Após o fim da curta turnê “Renaissance World Tour” que durou menos de um ano, o vácuo temporal aumentou as expectativas para onde ela estaria indo em seu segundo ato.
No SuperBowl deste ano, em um comercial com parceria com a empresa Verizon, Beyoncé anunciou duas faixas: “TEXAS HOLD’ EM” e “16 CARRIAGES”. Havia algumas especulações e teorias de fãs que seu segundo ato fosse do gênero country. E de fato foi.
Como mencionamos na review de “TEXAS HOLD ‘EM” e “16 CARRIAGES” (leia a review de ambos AQUI), ela estaria pisando em um campo minado do gênero que era majoritariamente dominado por brancos, conservadores e religiosos. No Country Music Association Awards 2016, ela apresentou “Daddy Lessons” de “Lemonade” ao lado do clássico trio de música country Dixie Chicks. O incômodo da audiência em vê-la no palco cantando algo do gênero deles incomodou, e muito. Recentemente, Beyoncé indiretamente citou o ocorrido: “‘Cowboy Carter’ nasceu de uma experiência que tive anos atrás, onde não me senti bem-vinda, e ficou muito claro que não fui bem-vinda”.
Knowles estava ciente de que estaria pisando em um campo minado encharcado de regras morais anacrônicas, mas para uma artista do naipe dela, nada é demais. Ela tenta resgatar as referências negras do gênero como Willie Jones, que com o passar do tempo foi perdendo espaço num gênero aniquilante e intolerante ao diferente.
O disco conta com 27 faixas, com duração de 1 hora e 18 minutos. O projeto navega em maior parte pelo country feito à moda excelente de Beyoncé, com pequenos toques ao folk, pop e hip-hop. O R&B clássico dela quase não é visto por aqui, o que pode decepcionar seu público geral.
A primeira metade do álbum é cheio de referências aos atos do country que poucos irão captar, visto que o público apesar de consumir em peso os trabalhos de artistas do gênero, não é amplamente difundido mundo afora, e há alguns pontos fora da curva como o blockbuster “Old Town Road” (2019) de Lil Nas X com Billy Ray Cyrus. Apesar de Morgan Wallen ter um dos discos mais vendidos da década até agora nos Estados Unidos, seu reconhecimento mundial é praticamente zero. Por este motivo, o alcance de Beyoncé para um gênero tão nichado e poderoso pode constranger quem a incomoda.
As faixas “AMERIICAN REQUIEM”, “TEXAS HOLD ‘EM”, “JOLENE” e “PROTECTOR”, com participação de seu filho Rumi Carter, são pedaços excelentes que provam mais uma vez que sua arte e seu talento estão acima de qualquer questão. A impostação em sua voz entregando um vibrato mais acelerado e curto é tão característico que quase não dá para distinguir se ela é uma artista pop mainstream ou não. Os arranjos crus e pouco sintetizados brilham tanto que é capaz de sentir a poeira em suas mãos do ambiente seco e quente do Texas. Ela dissolve o constrangimento em “AMERIICAN REQUIEM” no refrão onde canta: “há muita conversa acontecendo / enquanto eu canto minha música / você pode me ouvir? / eu disse: ‘você está me ouvindo?’ (…) podemos defender alguma coisa? / agora é hora de enfrentar o vento / agora não é a hora de fingir / agora é hora de deixar o amor entrar”.
Os interlúdios de transição “MY ROSE” e “SMOKE HOUR WILLIE NELSON” definem a sensação de escutar o disco: uma viagem na estrada 405 enquanto escutamos o chiado do rádio.
Em “BODYGUARD”, temos um country-pop tão clássico quanto filmes baseados no sul dos Estados Unidos. A sua voz propositalmente preguiçosa e deslizante canta enquanto a guitarra quase rima: “querido, querido, eu poderia ser sua guarda-costas / oh, querido, eu poderia ser seu Kevlar / oh querido, eu poderia ser sua salva-vidas / oh querido, você deveria me deixar andar de espingarda”. O vocalize na ponte é tão espetacular que pode tornar uma de suas favoritas do disco.
Temos um sabor brasileiro em “SPAGHETTII” à moda de “Movimento da Sanfoninha” que sutilmente vai triscando o arranjo grave enquanto ela canta em rap quase em stacatto: “eu não estou em nenhuma gangue / mas tenho atiradores, bangue-bangue / num estalar de dedos, sou o Thanos / e ainda estou na sua cabeça como trancinhas / eles me chamam de capitão, assassina da passarela / quando eles sabem que está dando um tapa, aí vem o latido, essa p*** é só uma expedição de pesca / admita, idiota / na cozinha, cozinhando aquelas galinhas / tudo igual para mim, Jane Simple, espaguete! / sem molho, sem molho, muito mole, muito mole / eles são salgados / atire que nem Curry”.
Em “ALLIIGATOR TEARS” temos um country-rock à moda de Fleetwood Mac. A voz de Beyoncé fica firme e desliza na dicção enquanto ela canta suave o refrão: “você diz mover uma montanha / e eu irei calçar minhas botas / você diz para o rio parar de correr / eu vou construir uma represa ou duas / você diz mudar de religião / agora, eu passo os domingos com você / algo sobre essas suas lágrimas… / como é ser adorado? / você e suas lágrimas de jacaré”.
Nas faixas seguintes, nos deparamos com “II MOST WANTED”, colaboração inédita com Miley Cyrus, que encaixa perfeitamente ao disco e é um dos pontos mais altos por aqui. Já se tornou uma canção clássica onde ambas cantam o refrão em uníssono com muita sintonia e afinação. O timbre forte de Beyoncé e o timbre grave de Miley conversam quase como amantes entrelaçados. A ponte é carregada por um arranjo linear que dá ênfase à voz das duas, entregando um clímax belíssimo, onde elas recitam: “serei seu cavaleiro de espingarda / até o dia em que eu morrer / fumaça pela janela voando pela 405 / sim, serei seu banco de trás, amor, deixando você louco / sempre que quiser / eu serei seu cavaleiro de espingarda até o dia que eu morrer”.
E então temos a melhor faixa do disco, “LEVII’S JEANS”, colaboração com Post Malone. A canção é tão apaixonante e confortante, que adiciona mais um excelente hino ao repertório das love songs de Bey. Com uma voz cheia de fry que simula uma preguiça pós-matinal e um timbre doce e quase suspirado, ela canta o refrão: “você me chama de coisinha linda / e eu adoro te excitar / garoto, vou deixar você ser seu jeans Levi / para que você possa abraçar essa bunda a noite toda / venha aqui sua coisinha sexy / tire uma foto e traga / oh, eu queria ser seu jeans Levi / o jeito que você pega meu telefone / eu te amo até os ossos”. O refrão cantado com os dois em harmonia é tão delicioso que acidentalmente revela o bonito timbre de Post Malone para cantar fora do rap/hip-hop pelo qual ele é conhecido. Ele canta até com impostações diferentes e com notas retas sustentadas. Simplesmente sensacional.
A partir de “YA YA”, o disco vai tomando outro caminho, o que pode fazer com que esta análise não o segmente apenas em country e sim em um pop sintetizado, que explica o porquê Knowles disse que este “não é um álbum country, é um álbum da Beyoncé”. A pitada de gospel com soul e jazz em “YA YA” traz a energia do gospel como se fosse uma interpretação de Stevie Wonder com um canto acelerado como se a euforia tomasse conta de tudo.
Os destaques finais do disco são de responsabilidade de “II HANDS II HEAVEN” e “TYRANT” que abandonam a raiz country do início do projeto, quase como se fosse uma transição para “RENAISSANCE” (já que era para este ter sido o segundo ato no lugar de “COWBOY CARTER”).
A gratidão é o ato de encerramento com “AMEN”, onde Beyoncé vai gospel e canta quase como uma adoração acompanhada de um coral forte e um piano grave dramático enquanto canta: “misericórdia de mim, tenha misericórdia de mim / eu posso ver você sofrendo muito”.
O segundo ato pós “RENAISSANCE” é mais um capítulo histórico onde Beyoncé planta a bandeira de diamante do seu legado.
NOTA:

Escute “COWBOY CARTER” de Beyoncé aqui: